domingo, 4 de setembro de 2011

MOMENTOS 35


4 de Setembro de 2011


O regresso ao que já fomos.

A viagem trouxe-nos ao mesmo local de onde partimos, ao mesmo momento, aqui no centro caótico do Ardh Khumb Mela. Regressámos diferentes do que já fomos. A viagem trouxe-nos de volta enriquecidos com todas as histórias. O grande rio sagrado fervilha de vida e está mudado. Pensei que não voltaria a vê-lo, e ele que se encontra espalhado um pouco por toda a parte.

Acordei de um longo sono e tudo se move vagarosamente, de uma maneira quase gentil. Até o tempo se espreguiça não querendo sacrificar as sombras deste início de manhã. Não voltaremos a ser o grande rio sagrado até morrermos. Outra vida e talvez, quem saiba, o apelo surja de novo e o corpo possa regressar à sua líquida forma, pura e cristalina, das nascentes geladas do planalto de Gomukh. O corpo encontra-se dormente. As misteriosas palavras com que se construiu a primeira de todas as histórias fazem agora parte de quem sou. Deixei-as entrar depois de descobertas ao longo do trajecto realizado enquanto peregrino improvável, herdeiro da poderosa marca azul oferecida pela mais bela das princesas.

Aos poucos volto a recordar o ritmo do bater do coração e acompanho as melodias e os cânticos da multidão. Recordo os odores intensos que regressam invisíveis como a neblina deste novo dia que acaba de nascer.

O tempo recusa-se a avançar e agradeço.

Este é o tempo de meditar.

Tudo nestas vidas mudou, porque eu mudei. O poder da marca azul estava somente adormecido, como nós, e dar-lhe uso agora era fundamental.

Quero observar por vários dias o nascer desta manhã. Serei egoísta o suficiente para fazer parar o tempo agora, no instante em que todos se deslocam para a confluência sagrada dos irmãos Ganges e Yamuna. Este momento único e irrepetível por séculos e séculos que nos sucederão, não pode ser observado nas poucas horas que fabricam este dia.

O mesmo tempo que me levou trouxe-me de volta.

O mesmo tempo que me transformou desejou fazer de mim o rio sagrado, a mãe-montanha, a floresta, o fogo e o gelo, as garças e os grous de pescoço e cabeça negras.

O mesmo tempo que me derrotou, colocou-me no caminho da primeira história e fez de mim um vencedor.

O mesmo tempo que me abandonou e se esqueceu de mim na subida ao topo do Kangenchunga, fez desabrochar flores violetas que me ajudaram a escutar as florestas milenares, o vento e as brisas que as penteiam.

O mesmo tempo que encontrou o rapaz órfão criado na maior das lixeiras de Allahabad, transformou-o no viajante azul de asas imortais, capaz de se fazer transportar até as mais distantes paragens, capaz de se sentir o mais importante dos peregrinos.

O mesmo tempo que avança incólume, inabalável e imperturbável desde que foi criado das primeiras lamas antes do espaço onde tudo corre e se espreguiça, veio adormecer ao meu colo, colocar-se ao serviço da força improvável que me foi doada pela menina princesa do Ganges.

O mesmo tempo que me diz baixinho para eu não ter receio de envelhecer, é o mesmo que se ri alegremente sempre que utilizo o poder da sagrada marca azul, fazendo-o parar.

- Tu e eu somos irmãos, Larniki. É com orgulho que vejo o quanto cresceste desde o início desta jornada. Repara como estes milhões de peregrinos acreditam, sentem neles uma fé inabalável que os move assim desde que se conhecem as primeiras histórias. Eles fazem parte integrante dessas primeiras histórias, até da primeira. Sentem nas suas entranhas a mesma força que até aqui trouxe os seus avós a primeira vez. Serão assim tão diferentes de nós? Gostas de me fazer parar, de aproveitar o teu poder para me fazer recuar um pouco ou mesmo fazer-me voltar muitos anos atrás na minha peregrinação. É isso que nos faz ser tão parecidos, somos ambos viajantes criados antes de tudo, retirados das primeiras lamas que nos deram existência. Preferiste manter-te do lado mais azulado da viagem. Ganhaste humanas formas. Essa construção permitiu-te sonhar como mais nenhuma outra das que foram depois de nós criadas e viajaste como ninguém. Foste o sal, o pequeno átomo, a luz das estrelas e a escuridão dos buracos-negros. Foste planeta perdido, cometa, semente, quasar, e foste, tal como eu, um tempo que existiu paralelo a mim, como um gémeo que procura seguir a própria sombra. Foste os anéis de milhares de planetas, foste a energia que os manteve equilibrados, vivos, aquecidos. Foste a vontade que fez com que tudo voltasse novamente ao seu início para que agora, neste momento, possas ser o jovem Larniki que me parou.

O mesmo tempo que se manteve em silêncio, ocupado com a sua vil tarefa de tudo envelhecer, é o mesmo que me diz agora ser meu irmão e me dá conta desta verdade guardada nas pedras geladas da lagoa de Gomukh. Se ele o sabia é porque é, de facto, meu irmão.

O mesmo tempo que me acompanha, que se derrete invisível à volta de tudo o que tem existência, é o mesmo que aguardou todo este tempo para mo dizer.

Agora que o parei para observar com a devida atenção e clareza o Ardh Khumb Mela, resolveu comunicar-me parte da história primeira.

Olho para estes peregrinos que acreditam, que confiam, que apenas desejavam estar aqui hoje nesta ímpar comunhão. Só agora, depois da primeira parte da viagem, eu acredito.

Acredito no tempo, nas pessoas, nas histórias que as construíram, no que significam e no que somos. Acredito no amor, na força única e indestrutível da sagrada marca azul. Acredito no Ganges, acredito em todas as preces de todos os peregrinos que o visitaram, visitam e visitarão. Acredito na protecção e no amor da menina princesa do Ganges, no seu sorriso, no calor da sua pele e dos seus beijos. Acredito em meu irmão pois ele sou eu e eu sou o tempo. Acredito neste momento, no aqui e agora como a única verdade eterna e indestrutível. Acredito que este Ardh Khumb Mela será irrepetível pois foi nele que aprendi a ser o Ganges e nele me transformei, nele me revigorei e quase desapareci. Acredito em ti, minha princesa, meu amor, e na nossa secreta morada lunar onde nos amamos. Acredito que regressaremos ao que já fomos, tal como agora, tal como depois desta minha peregrinação.

Agora vejo, respiro e medito.

Estes que aqui se banham e vieram comungar são meus irmãos, como o tempo, como o Ganges e o Yamuna. São parte da minha família de quem não conheço pai e mãe.

O mesmo tempo que se manteve em silêncio continua parado e a sorrir. Sabe que agora eu acredito. Sabe que, mais dia, menos dia, o vou deixar continuar a avançar. Sabe que eu sei que os peregrinos me empurrarão e arrastarão para o rio sagrado que está pronto para me receber tal como às luzes e aos desejos.

Este é o tempo de libertar o tempo.

Este é o tempo de deixar que o corpo seja arrastado pelos anciões para as águas do grande rio sagrado.

Depois será anunciado um renascimento purificador que nos colocará, novamente, um em frente ao outro pela primeira vez.


FIM


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

MOMENTOS 34



4 de Agosto de 2011


Reconheço as brisas que rodeiam a norte a entrada da cidade. Convidaram-me a regressar a Allahabad quando todos os peregrinos se reúnem para o Ardh Khumb Mela.

O grande Ganges prepara-se para os acolher. Os próximos quarenta e cinco dias hospedarão os milhões que se deslocarão até esta cidade sagrada.

O espírito de todos reunir-se-á acordando a união deste momento transformando-o na maior de todas as congregações humanas.

Transformar-se-ão em silêncio, em coisa nenhuma, em esperança e meditarão nas profundezas da terra. O Ganges e o Yamuna são os irmãos mais visitados em todo o Mundo por estes dias. Luzes transformam noites em dias, barcos invadem as águas sagradas e tudo se transforma com as tonalidades violetas do entardecer. Chega a noite, ninguém dorme, ninguém descansa, os Shadus tomam de assalto as margens do rio sagrado e a maior de todas as procissões irá ter lugar na manhã do novo dia. As ruas animam-se com sons, danças, grupos de peregrinos aos milhares que se deslocam a pé, outros a cavalo e outros de elefante.

Quero banhar-me no Sangam do Ganges, do Yamuna e Saraswasti, purificar-me e ganhar a imortalidade ao beber do sagrado néctar amrit.

- “Har Har Gange” – que viva eternamente o grande rio sagrado que me lava e purifica, absolve os meus pecados e presta auxílio na minha reencarnação. As cinzas vestem-me, cobrem-me o corpo que já não me pertence, escondido na neblina e fustigado pelos gelados ventos da manhã, procuro o meu lugar dentro de ti. No início senti frio mas ao mergulhar de novo o frio desapareceu. Vestiste-me com pureza, bom auspício e imortalidade.

Nada em vida se compara a tão grandiosa comemoração. Oferecemos incensos e flores ao grande rio sagrado, banhamo-nos nas tuas águas e procuramos em ti a paz esquecida nos momentos de todos os dias. O planeta aqui é outro, todos vivemos no coração uns dos outros e em todo o lado. O laranja cobre o corpo dos shadus, dos peregrinos e dos animais que transportam os peregrinos. Os banhos sagrados irão continuar até ao fim das festividades. As pontes sobre as margens do Ganges e do Yamuna serão atravessadas vezes infinitas, vozes elevam-se aos céus. Multidões convergem durante a noite para junto das margens do rio sagrado iluminados pelas luzes artificiais como fantasmas. Os corpos pintados de cinza avançam na direcção das águas purificadoras que os libertarão, os reencarnarão e lhes devolverão o poder da imortalidade guardada na antiga khumba onde o néctar amrita descansava.

Cobre o meu corpo de cinzas, medita na minha companhia nas margens do Ganges, levanta os braços em direcção aos céus celebrando Indra, celebrando Vishnu, honrando a glória dos deuses que tudo protegem, que tudo honram e que tudo amam e dos quais, como nas histórias, todos fazemos parte. Levantam-se as poeiras das margens que se acalmam ao entrarem nas águas dos rios sagrados. Celebra-se com danças, cantos, preces e meditações. O rio transforma-se num formigueiro desconexo com peregrinos a perder de vista. Os vedas são recitados e com eles partes da primeira história. As pontes são como cobras estendidas entre as margens. Servem de ligação aos mais de sessenta milhões desta congregação de quarenta e cinco dias do Ardh Khumb Mela.

Centenas de campos de peregrinos foram montadas de acordo com as comunidades que neles respiram. A comida é-lhes servida e escutam os seus Swami, cantam e dançam e meditam e são. A verdade é ensinada pelos yogis, pelos mestres e gurus que nos transformam como nos transformou a palavra de Buda. De onde vem a paz, o silêncio e o amor verdadeiro? Não surgem dos conflitos, das guerras sem sentido, das lutas pelos diferentes poderes perseguidos pelos homens. Não se adquirem por materiais riquezas pois o verdadeiro amor chega coberto pelo silêncio.

Um silêncio, uma quietude e uma esperança.

Onde existe o silêncio encontra-se a magia da verdade, encontra-se a história primeira, arquivada no centro de quem verdadeiramente somos, como no coração da primeira de todas as pedras. As histórias são contadas através de cantigas e de cânticos, ampliadas pelos ventos que as transportam através das neblinas temperadas com os odores de todas as refeições.

Transformei-me em sadhu com apenas doze anos. Quem se recorda verdadeiramente com aconteceram as coisas com essa tenra idade? Não sei da minha família, quem sou e a quem pertenço. Tenho sessenta anos de idade e trago o meu braço direito levantado por anos incontáveis nesta venerada posição. O único poder que o mantém assim erguido é o da minha vontade que com ele vai crescendo.

O lado iluminado da lua ilumina os caminhos dos peregrinos. O sol nasce, a névoa da manhã cobre os rios sagrados e a cobra-ponte continua a alimentar as margens com as multidões, com os seus ruídos, odores, cheiros, perfumes, cânticos, com buzinas e com todos os outros sons menos o som dos silêncios.

As lamas invadem os recintos sagrados do festival. Os viajantes continuam a banhar-se junto à confluência sagrada do Ganges com o Yamuna, continuam na busca da verdade, uma verdade que esperam aqui encontrar mascarada no néctar sagrado, mascarada com as cores da imortalidade que aqui veio desaguar.

Desejam a verdade e deixam para trás outras opções de vida. Transformaram-se em sadhus, em yogis, em gurus, em outros mestres divinos. Anseiam alcançar esse supremo grau de consciência mas não estão verdadeiramente preparados para atingir esse patamar de suprema justeza. Quanto mais o desejam maior será o preço a pagar pelo desejo e maiores as renúncias e o abandono.

As campainhas e as canções continuam a perpetuar os dias e as noites do festival. Seguem-se os banhos sagrados no rio que é a nossa mãe, o nosso néctar. Louvá-lo cantando dentro dele as mantras sagradas.

Se os corações não forem puros nunca seremos transformados e a alma permanecerá para sempre igual ao que já foi.

A nossa vida pertence ao grande rio sagrado, aqui em Allahabad nos voltamos a reencontrar.

Oferecemos-te tudo aquilo que a nós desejaste consagrar.

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quinta-feira, 28 de julho de 2011

MOMENTOS 33


27 de Julho de 2011


Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Rodeado por este azul deslumbrante, sigo pelo caminho das pedras para lá das paredes do mosteiro até onde a vista deixa de o alcançar.

Escuto os acordes da sinfonia das plantas, eles são as memórias do tempo que aqui veio repousar. Escuto as marés longínquas, os pinheiros a crescer e os regatos a fluir.

Recordo os sons do sonho e as cores com que se vestia, a luminosidade dos teus passos e a surpresa por nele teres aparecido. O teu sorriso e perfume invadiram a estrada por onde seguia. Voltei para trás para tentar recolher a pequena lembrança de infância que tinha desaparecido e com a qual jogava. Receei tê-la perdido para sempre e corri para a resgatar. Quando me coloquei de joelhos para a apanhar estavas junto a mim. Lembro-me que um vulto caminhava na minha direcção como uma miragem. Foi só depois de ter recolhido o brinquedo e de o ter seguro na minha mão que percebi que eras tu que me tinhas vindo visitar. O sonho ficou alegre e perfumado. Levantei-me para podermos conversar mas a luz intensa da manhã trouxe-me de volta a esta viagem ficando a conversa adiada

Acordei a escutar as preces dos peregrinos, como um sinal, e as ruidosas mensagens sonoras que dão conta dos acidentes, das vítimas que caem aos pés dos poderosos, dos enfermos e dos cegos, dos esfomeados, dos sedentos, dos arruinados e de todos aqueles por quem os sinos dobram.

No caminho já percorrido falta encontrar a história que possa explicar a primeira delas todas. Existem histórias perdidas no coração das pedras que se dedicam exclusivamente a tentar explicar os significados das outras histórias. Foram bordadas como histórias dentro das histórias tal como esta que me vai sendo contada.

O caminho é agora outro.

As pedras cresceram, algumas transformaram-se nestas montanhas sob o peso tremendo dos segredos que assim as construíram.

No sonho tudo se parecia com os caminhos que encontrei ao viajar como peregrino. Foi breve o encontro, breve o passeio, forte a sensação, os perfumes, as tonalidades luminosas que encheram de alegria o início deste dia.

Percebi que é tempo de regressar.

Este é o tempo de regressar, percorrer todo o percurso de volata ao Ganges, visitar novamente Allahabad no dia do Ardh Kumbh Mela e relembrar momento a momento, relembrar todos os instantes desde o primeiro poema, a primeira palavra, a primeira letra escolhida para dar início à viagem.

O tempo não parou. Este sonho teve o condão de retirar o poder da marca azul e de me iluminar o início deste dia. Nesse instante, nesse momento, o tempo voltou a viajar e eu com ele, e tu comigo, e todos os outros a quem pertence esta viagem.

As portas não param de bater e as janelas que se encontravam fechadas foram subitamente abertas entrando a ar e todos os sons para a grande sala do palácio.

As orações e as preces de mais de duzentos monges serenam a vida deste reino. Meditam tal como o tempo que resolveu acordar.

Este é o momento que o tempo medita.

Eu sou o Tempo e guardo em mim a memória de todas as histórias, mesmo a primeira. Antes das primeiras lamas me terem criado, existiu uma minúscula partícula de sonho onde a neblina moldou o espaço que tudo protege com a consistência de todas as outras coisas. Porque sou o Tempo sou infinito e infinitamente minúsculo. Nessa sublime insignificância estão contidas todas as histórias que alguma vez se contaram e já se adivinham todas as outras que ainda estão por acontecer.

O perfume contido nessa pequenez, conjugado com o sabor ímpar do teu sorriso, transformou-me novamente em rapaz-pássaro e as minhas asas voltaram a crescer.

Sou uma parcela desse Tempo onde tudo existe em forma de rapaz-pássaro. Um rapaz que foi o rio, a neblina, o firmamento e a luz, foi os segredos da montanha-mãe, foi história das pedras da lagoa de Gomukh, foi a lagoa, foi a árvore na floresta do Butão, o lobo e apresa, o meio-irmão de Arjuna, foi o escriba e o penitente, foi o peregrino e foi aquele por quem todos os peregrinos se fazem ao caminho. Sou uma minúscula parcela desse Tempo e sou como o vazio que segura as galáxias, as estrelas, os planetas, os cometas e todos os meteoritos. Esses meteoritos foram cobertos por uma nova luz azul que os circunda nascida na nossa morada lunar das pétalas de suas flores.

Neste imenso palácio do reino do Butão venho depositar parte destas pedras.

Vou correr na direcção do início da história. Foi-me dito que partes importantes das respostas continuam arquivadas nesse passado longínquo, nesse tempo em que as pernas pareciam não fazer parte do meu corpo franzino, esse corpo que mal se distinguia da patine que fermentava os restos da cidade onde vivi.

Voltaste para junto de mim.

Vejo o teu corpo mas não te posso tocar.

Vejo-te entretida a construir ciclones uns atrás de outros, esse teu jogo predilecto que faz crescer o Universo com galáxias deslumbrantes.

Sorris.

- Não tenhas medo de recomeçar. Quando regressares saberás onde encontrar-me mesmo que todas as lembranças te sejam retiradas. Vais voltar a ver-me pela primeira vez. Vais ver-me como sombra, como uma miragem que te surgirá desconhecida tal e qual esse teu sonho de hoje. Vais passar por momentos de extrema aflição e angústia. Sentir-te-ás o mais miserável e solitário dos seres. Tentarás encontrar respostas para as perguntas que irão despertar no teu coração. Questionarás os porquês da existência, das virtudes e dos defeitos, das maldições que te condenaram a essa vida, das famílias que sendo tuas desconheces, do sentido oculto de todas as coisas, da forma das coisas, dos sabores, dos cheiros e das suas tonalidades. Desejarás obter o impossível até que este vá ter contigo em forma de marca azul, de sagrada marca azul que te oferecerei. Não posso viver sem ti, não podemos viver um sem o outro pois as nossas existências acabam sempre por se reencontrar vezes e vezes e vezes sem conta, sem nunca nos repetirmos, nunca iguais mas sempre um para o outro. É assim que desenho os ciclones, as galáxias e me divirto. É assim que gostas e me alegras e me amas como eu a ti. No coração das pedras continuam perdidas todas as histórias. A tua missão será a de descobrires onde estão guardadas as histórias que explicam a tua pois ela é parte importante de todas as outras, até da primeira. Agora vai! Segue de novo o caminho que te levará a Allahabad. Vai ser de novo quem tu foste sabendo que para isso terás de voltar a acordar.

Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Despertei deste outro sonho dentro do sonho que me invadiu esta noite e meditei.

- Aqui, no centro da capital do reino, neste templo sagrado construído no interior do palácio real, medito. Retirei sumos estranhos do interior das pedras. As águas do Ganges onde renasci fizeram parte de mim e eu fui essas águas. Encontrei-te quando recuperei as forças para vencer o infortúnio, quando as pernas, os joelhos e todas as partes do meu corpo passaram a pertencer-me. Cresceram-me asas brancas, imensas, nesse meu dorso azul. Voei dias e dias sem parar. Planei por desertos, planícies, vales, montanhas infinitas. Galguei as galáxias ao colo das novas amizades firmadas no fundo da lagoa de Gomukh onde nasci. Fui peregrino e senti o que sentem todos o peregrinos, os vencedores e os que são derrotados pelo poder da montanha-mãe. Bebi de todos os sumos e provei de todos os néctares. Conheci-te sem nunca te ter esquecido pois vivemos eternamente na nossa morada lunar. Fui a lua e fui a sombra do seu lado escondido. Fui as recordações do tempo das lamas quando tudo foi criado e regressei ao templo onde o tempo vem para descansar. Aqui é o lugar onde esse peregrino improvável medita.

Eu e o Tempo aguardamos pelo sinal que sairá das campainhas sagradas. Aguardamos a musicalidade da oração dos monges e a sabedoria contida nas suas palavras.

Este é o reino de todos os silêncios, o reino onde se vieram depositar as histórias construídas a partir da primeira e até partes da primeira.

Aqui continuam a chegar bandos de grous carregando as suas palavras.


Sigo o caminho das pedras

Das memórias do Tempo que aqui vem repousar

Recordo os ruídos do sonho

E nele o teu perfume

O teu sorriso


Escuto as preces dos peregrinos

Como um sinal

Bordado como as histórias

Dentro de outras histórias

E questiono os porquês da existência


O Tempo não parou

Voltou a viajar

Até ao momento em que foi criado

Pelas primeiras lamas

Infinito

Minúsculo

Perfumado


O tempo corre na direcção do início

Onde vejo o teu corpo

Mas não te posso tocar

Até que descubra onde estão guardadas todas as histórias


Terei de regressar a Allahabad

Despertar deste sonho

E do sonho dentro deste sonho

Retirar o sumo do interior das pedras

Deixar de ser a sombra do lado escondido da lua

Continuar a descobrir esta história


E partes da primeira

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terça-feira, 26 de julho de 2011

MOMENTOS 32


26 de Julho de 2011


Os lobos atacaram as presas indefesas deixando as altas planícies manchadas para sempre com o vermelho do seu sangue.

Larniki encontrará o fim do caminho quando a lua descer, o sol pousar e a terra parar de rodar.

As montanhas prestam homenagem às histórias pois é aqui que os actores encontram refúgio nas jornadas, é aqui que vêm dar de beber à sede e alimentam as vozes que assim os moldaram.

Filho de Kunti e do deus sol, Karna cresceu sem saber quem era, sem sonhar que devia a sua existência aos deuses e que nele corria a seiva sagrada. Cresceu sem saber que combatia contra os seus meios-irmãos pois são amargas as sementes antigas que contêm todas as dádivas, são venenosas e destruidoras, são capazes de arrancar a eterna serenidade das montanhas.

Fechei os olhos e meditei.

Nas relações construídas entre irmãos, meios-irmãos, pais e filhos, entre cunhados, tios e sobrinhos, se foram conhecendo e crescendo as entranhas da maldade, dos ódios, da devoção, do amor, do desespero, do abandono, do vício, da dependência, da disciplina, do dever da renúncia e da mais sincera amizade. As histórias, tal como os actores, separam-se à nascença, como dois rios que nascem da mesma fonte e seguem caminhos separados. As águas são as mesmas, libertam-se do lugar encantado onde me encontro e em nada se distinguem. Percorrem os mesmos caminhos iniciais, de mãos dadas, mas cedo se esquecem dessa unidade ao separarem-se para seguir destinos opostos.

As pedras que sedimentaram os seus leitos são diferentes, as histórias que lhes contaram e ainda contam são diferentes, as paisagens que as vestem, os povos que neles habitam e as preces que são realizadas são diferentes. Mas são as histórias que dão a real dimensão da diferença entre os dois irmãos pois foram elas que os construíram de maneira tão diferente.

O rei Dhritharashtra renunciou à condição real pois entendeu que, como os rios e as montanhas, nem todos crescem para ser deuses.

As cordilheiras são as marcas divinas na paisagem e nada as consegue suplantar. O céu, acima delas, cobre-as, pinta a moldura que as embeleza mas muda consoante os seus humores.

Nos mosteiros do Butão o tempo parou.

Os sinos badalaram uma última vez antes que desse uso à marca azul que me ofereceste. Prefiro não saber que no início, como agora, é sobre o Poder que tudo se constrói. Aos diferentes tipos de Poder se verga o homem, se tem vergado e vergará pois acredita, como os rios que se separam após a nascente, que não nascem iguais.

Represento a vontade de mudança, como um rio de força. Rapidamente voltei a dar uso às asas oferecidas. Subi até aqui depois de anos e anos a caminhar como os verdadeiros peregrinos. Aqui medito e meditei acompanhado de parte das primeiras histórias e até da primeira.

Não sei quem sou, não descobri quem sou, não ainda, mas com Karna encontrei quem não tivesse resistido ao lado amargo das dúvidas, quem lutasse contra irmãos dominado pelas dores tremendas e solitárias que nos moldam crescimento e carácter. Ao parar o tempo o mundo pára, a solidão pertence-me. Necessito destas pausas para pensar em ti, pensar em nós, afastados da loucura nessa redoma sagrada que é a nossa morada lunar. O caminho até aqui foi longo mas ainda só vai no seu início. As luas continuarão a pintar as noites, os sóis a iluminar os dias, as monções a fazer crescer os rios sagrados, as neblinas a alimentar sangrentos desejos de vingança e o fogo continuará a cremar os corpos dos penitentes. As garças continuam a migrar, os falcões a caçar, os grous a transportar as histórias que se escondiam no coração das pedras até estes remotos lugares e os homens continuarão a procurar pelos primeiros contadores de histórias e onde é que estes se encontram.

Fazem-no porque não se conhecem e necessitam saber quem são.

Alguns são filhos de deuses, outros netos de deuses, outros são apenas contadores de histórias sem as quais os próprios deuses não existiriam, logo são também pais dos primeiros deuses e dos seus filhos primogénitos.

Entender a força que exerce o fascínio do Poder, não era o que aqui esperava vir encontrar nesta parte do mundo.

Os guerreiros combatem por motivos que nem os generais conseguem explicar. Os animais caçam para sobreviver, o homem luta, morre e mata em batalhas sangrentas para demonstrar o Poder da sua visão e dos seus deuses, luta por raiva, luta porque recorda as privações que os irmãos lhe causaram, luta por vingança ou pelo prazer de dar caça à sua própria existência. Luta por tudo, luta por nada, luta por não saber fazer mais nada.

Na lua fazemos amor, amamo-nos como se disso dependesse a existência de todas as coisas. Na lua somos um para o outro, meu amor, minha princesa do Ganges, e só assim pode esta história continuar. Se não pertencêssemos um ao outro já estaria morto e o meu corpo teria sido abandonado numa das margens do grande rio sagrado para onde fui arrastado pela multidão. A história teria ficado por contar, como tantas outras histórias. Deste-me a mão, deste-me força e um poder sagrado contido nesta mantra azul que nos pertence. Aqui na lua nascem todas as flores que nos alimentam. Assim ficamos azuis pois essa é a sua cor. Assim nos amamos em camas feitas de pétalas azuis, em colchões de pétalas azuis, em mantas brocadas com fios de pétalas azuis, como de pétalas são feitas as letras desta história resgatada ao coração das pedras da lagoa de Gomukh. As pétalas que nos cobrem pintam de azul o céu que adorna a terra e dá cor aos oceanos e a todas as águas que reflectem as pétalas da nossa morada lunar. A lua é azul, tão azul como as estrelas e o sol é a mais azul de todas elas. Os sonhos que temos são azuis e apagam todas as cores dos pesadelos, mesmo os que procuraram plantar nas vontades de nossos filhos. A neblina que os esconde é azul, impenetrável, de um azul tão escuro que tudo cobre e esconde.

O fundo da lagoa de Gomukh é azul e até as cores que, luminosas, cobriam as pedras voadoras que se encontram nos caminhos celestes que iam dar à tua outra casa já não são mais verdes, mas azuis. Este meu sonho é azul porque assim medito e nem os terrores que me causaram a história que aqui vim encontrar me apagaram a esperança pois pensei em ti.

Estávamos juntos na nossa morada lunar e acalmei.

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quarta-feira, 20 de julho de 2011

MOMENTOS 31


19 de Julho de 2011 (noite)


Era uma vez uma princesa do Norte chamada Ghandarhi que por muito tempo viajou até ao reino de Dhritharashtra, o rei cego. O seu casamento tinha sido arranjado e viveu em retiro até ao dia de seu casamento. A sua aia, que visitava a cidade, trazia-lhe as novidades e explicava-lhe todas as maravilhas que nela encontrava.

- Princesa, vi o seu futuro esposo, ele é forte e poderoso mas a minha senhora foi traída. Dhritharashtra é cego, assim nasceu.

E a princesa disse que tal é impossível pois nenhum rei o pode ser sem o sentido da visão. Se tal fosse verdade só poderia reinar sobre a noite no meio dos lamentos dos enfermos. Se tal fosse verdade de que serviriam as cores de seus vestidos pois seu futuro esposo nunca as verá. Se tal fosse verdade, de que serviria o seu cabelo, a sua carne e a sua pele e os seus olhos.

- Dá-me o meu véu aia, pois com ele cobrirei meus olhos e tu serás a última das minhas visões neste Mundo. Leva-me agora até meu senhor.

E a aia obedeceu e levou a princesa até ao esposo que lhe acariciou o rosto, os ombros, o cabelo e o seu cheiro assimilou.

Em breve Ghandhari sentiu vida dentro de si mas parecia que nenhuma queria vingar. E sabendo pela aia que Kunti dera à luz Yudhishira pediu-lhe que esta lhe batesse na barriga com uma barra de ferro e que o fizesse com todas as forças que possuísse. Ghandhari deu à luz uma bola de carne escura e fria como metal, inerte e sem vida.

- Leva essa bola para bem longe de mim, atira-a a um poço sem fundo e deixa-me em paz!

Mas Vyasa, o que foi nascido depois de gerado no meio da neblina, disse à aia para cortar a bola em cem pedaços e que os colocasse em cem delicadas jarras de cerâmica e os regasse com água fresca todas as manhãs. Aproximando-se depois de Ghandhari lhe disse que dessas cem jarras nasceriam cem filhos sendo que o primeiro se chamaria Duryodhana. E os seus gritos foram escutados pelo pai na companhia de Bhishma que lhe comunicou ter o seu filho primogénito vindo ao Mundo com o intuito de o destruir. Se Dhritharashtra desejasse salvar a raça dos homens teria de o sacrificar.

Ghandhari disse que ninguém se atreveria a matar o seu filho sem que antes a matassem para o conseguir.

Madri recebeu o primeiro dos dias de Primavera acompanhada do esposo que observa a sua beleza esplendorosa. Atrevendo-se a tocar-lhe sem ter em conta a terrível maldição lançada pelas gazelas, atrevendo-se a desejar o Amor preferindo-o à própria vida, tentou vencer a morte que o seduziu. Pandu correu atrás de Madri que fugiu para tentar evitar a morte do esposo sem sucesso. Os dois se deitam no chão florido, se amam acabando Pandu por fenecer.

Madri foi ter com Kunti culpando o destino pelo sucedido, ao que Kunti respondeu ter sido Madri mais feliz do que ela pois observou o rosto brilhante de desejo do esposo Pandu que agora irá acompanhar na sua viagem final. Mas Madri pretende ser a companheira na viagem final por ter sido com ela e por ela que Pandu caiu. Entregou seus filhos à guarda de Kunti pois já não possuem pai neste Mundo.

- Serão como meus próprios filhos e tudo connosco partilharão,

E os corpos de Madri e Pandu foram cremados e o fogo os transformou e mais de vinte anos passarão até que a história possa ter continuação.

E Larniki, perdido no centro do reino de todos os silêncios, escuta a história primeira de entre todas as histórias, acrescentando-lhe as partes necessárias para que dela possa agora fazer parte.

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